• O somático de Pierre Marty: uma introdução

    Por Bruna Alencar  (Psicóloga e Psicanalista)

     

    3666_355234607929183_209578649_nFreud em seus estudos sobre a Neurose, principalmente sobre a neurose de angústia, se deparou com sujeitos que apresentavam doenças fisiológicas com fundo psíquico. Infelizmente, não seguiu inclinado diretamente a essa questão que hoje chamamos de Psicossomática. Neste sentido, este artigo apresenta o conceito da Psicossomática sob a perspectiva de Pierre Marty, com o intuito de apenas introduzir o tema, sem a intenção de explora-lo a fundo, muito menos de esgota-lo, visto que as chamadas “doenças psicossomáticas” estão em voga.

    Para a Psicossomática psicanalítica de forma abrangente o corpo (soma) e mente formam um todo inseparável, de modo que as representações psíquicas exercem um papel central no processo de somatização.

    O princípio básico da psicossomática de Pierre Marty é o de que a mente, em certas condições, pode não assimilar um traumatismo e, nesse caso, haverá uma sobrecarga sobre o soma, que resultará em somatização. Para Marty a capacidade de assimilação mental dos sujeitos tem limites e que esta capacidade podem ser maior ou menor conforme o sujeito, e em um mesmo sujeito, conforme o momento da vida.

    Assim, a capacidade de assimilação mental é denominada por mentalização. As mentalizações, para Marty, podem ser definidas resumidamente como as representações psíquicas dos sujeitos e constituem a base de nossa vida mental, exercendo, dessa forma, papel central no processo de somatização. A noção de mentalização surgiu após a formulação da primeira tópica freudiana acerca do funcionamento do psiquismo, que estabelece o sistema pré-consciente como local de manifestação, evocação e permanência das representações.

    As boas mentalizações, seria as que permitem a descarga ou o escoamento das excitações, surgem quando um sujeito possui representações psíquicas variadas e enriquecidas, ligadas entre si. Desse modo, as novas excitações são assimiladas com certa serenidade, gerando um eventual aumento de angústia e ansiedade ou, no máximo, causando sintomas somáticos funcionalmente localizados e não evolutivos, que são reversíveis sem maiores dificuldades e não apresentam maiores riscos à saúde, tais como gastrite, úlcera, asma, etc. Sujeitos mal mentalizados, por sua vez, com desorganizações psíquicas progressivas e que acumulam importantes excitações instintuais e pulsionais, são mais propensos a afecções somáticas severas, tais como câncer e doenças cardiovasculares.

    É importante salientar que a mentalização de um indivíduo diz respeito unicamente à vida mental disponível, isto é, ao sistema pré-consciente e consciente, sem ignorar que no pré-consciente existem derivados do inconsciente, mas com este se tem contato, o que não ocorre no inconsciente.

    Faz-se necessário distinguir assim com Freud o fez, a repressão do recalcamento. Este é um processo profundo que se dá entre o pré-consciente e o inconsciente, o ego perde o contato com o recalcado, ao passo que a repressão que se dá entre o consciente e o pré-consciente, o sujeito sempre tem noção do que está abafando. Ou seja os sujeitos reprimem voluntariamente sua mente disponível. É como se diante de uma situação traumática, o sujeito teria, para elaborá-la, que mobilizar sua mente. Como evitam isso, abrem a possibilidade para as somatizações.

    O interesse desta abordagem não está nos sujeitos que evitam a própria mente, mas naqueles em que a mentalização é precária por insuficiência representativa. No espaço analítico esses pacientes demonstram um pensamento superficial, desprovido de valor libidinal, excessivamente orientado para a realidade externa e estreitamente vinculado à materialidade dos fatos, pois não tem como aprofundá-lo, faltam-lhe meios, pode-se dizer que sua mente disponível destacou-se mal do período sensório-motor do desenvolvimento.

    Desse modo, Marty sugere que os sujeitos em questão se caracterizam por um comprometimento da capacidade de simbolização. Posteriormente, propôs que esse comprometimento tende a se desdobrar em uma considerável restrição da atividade fantasmática e em um marcante apagamento de toda expressividade de ordem mental, o que denota a existência de uma carência funcional do psiquismo.

    Levando-se em consideração tais especificidades, poder-se-ia imaginar que a dinâmica afetiva dos pacientes somáticos é regida exclusivamente pelo processo secundário. Os indivíduos em questão, não estabelecem conexões com conteúdos simbólicos, evidenciando a ocorrência de investimentos libidinais arcaicos, semelhantes àqueles executados quando o aparelho mental opera sob a égide do processo primário. Consequentemente, a energia psíquica — o substrato quantitativo da simbolização — se encontra livre e fomenta a utilização compulsiva dos caminhos mais rápidos e diretos de escoamento das tensões.

    É característico de pacientes somáticos condutas pouco elaboradas do ponto de vista psíquico são então adotadas para minimizar o impacto causado pelas excitações. Isso sugere que o inconsciente não consegue se comunicar mediante o emprego de representações e tende a encontrar no comportamento sua única possibilidade de expressão. Mediante a isto, a restrição fantasmática que os caracteriza faz do aparelho sensório-motor uma via privilegiada de exteriorização das demandas pulsionais.

    Desta forma, é possível notar no discurso dos sujeitos em questão que suas palavras frequentemente se encontram desvinculadas de elementos simbólicos e são empregadas como um mero instrumento de descarga das tensões.

    A readaptação dos elementos funcionais existentes no pré-consciente se torna, custoso na vida operatória dos sujeitos. Em função dessa readaptação ser uma condição indispensável para a execução dos movimentos psíquicos de organização evolutiva que se fazem necessários ao longo da vida, a substituição da simbolização pela reação biológica deixa de ser uma prática esporádica e reestruturante, transformando-se em uma ação usual e destrutiva. Desta maneira, o pensamento operatório não deve ser entendido como um mero desdobramento do impacto causado pela ocorrência de uma somatização, mas, sim, como um fator associado ao adoecimento.

    O que se postula é que esse modo de funcionamento psíquico se encontra intimamente relacionado a desarmonias afetivas ocorridas na primeira infância em virtude do desempenho inapropriado — excessivo ou insuficiente — da função materna. Nesse sentido, pode-se propor que, na maior parte dos casos, indivíduos operatórios foram educados por mães autoritárias, deprimidas, negligentes, superprotetoras ou que, devido a qualquer outro motivo, não se mostraram capazes de proteger seus filhos das tensões que os acometeram no início da vida.

     

    Referências:

    Ferraz, F. C; Volich, R. M (2005) . Psicossoma I: Psicanálise e Psicossomática

    Marty, P. (1993). A psicossomática do adulto

    Marty, P. (1998). Mentalização e psicossomática 

    Vieira, W. C. (1997). A psicossomática de Pierre Marty.

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